A CRISE CONTEMPORÂNEA e os impactos na

INSTRUMENTALIDADE Do Serviço SOCIAL¨

Yolanda Guerra§

"Quem esquece o seu passado corre o risco de repetí-lo"

(Jorge Santayana)

 

INTRODUÇÃO

A presente comunicação tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre os rumos da profissão a partir das determinações particulares do Serviço Social e das condições objetivas e subjetivas dadas pela crise contemporânea do capitalismo.

Busca-se determinar a natureza da crise e as transformações que ela engendra no mundo do trabalho e na subjetividade dos trabalhadores de maneira geral, e em especial, no âmbito do Serviço Social.

A crise contemporânea implica em profundas alterações nas relações entre os países, no mundo do trabalho, na economia, na cultura, nas práticas ídeo-políticas e profissionais. Interessa-nos captar as particularidades que estas transformações assumem nos países periféricos dados os traços constitutivos do tipo de capitalismo que nestes países se objetivou — dependente e excludente — e a maneira pela qual estas transformações se constituem em mediações às práticas profissionais e ao Serviço Social, em particular.

A hipótese é a de que a crise contemporânea engendra novas necessidades sociais, as quais se traduzem em novas demandas que o capital e o trabalho colocam à intervenção profissional. São, portanto, as transformações macrosocietárias que produzem alterações nas demandas profissionais, nos espaços de intervenção, modificam as expressões das questões sociais — matéria prima da intervenção do assistente social — provocam uma redefinição dos objetos de intervenção, atribuem novas funções à profissão e novos critérios para a aquisição de novas legitimidades. O que se está afirmando é que as alterações nas práticas ídeo-políticas das classes sociais, no "mundo do trabalho", na esfera do Estado, nas políticas sociais estabelecem novas mediações que se expressam nas condições objetivas (materiais e espirituais) sobre as quais a intervenção se realiza e condicionam as respostas dos profissionais. Frente a estas transformações, a dimensão instrumental da profissão passa a necessitar de vínculos cada vez mais estreitos com um projeto ético-político em defesa dos direitos sociais e da democracia.

 

 

A CRISE CONTEMPORÂNEA E SEUS IMPACTOS NA PROFISSÃO

 

 

1. Fundamentos objetivos e subjetivos da profissão

O Serviço Social, considerado como uma prática profissional que possui uma peculiaridade operacional, donde sua natureza sincrética e instrumental, encontra-se historicamente condicionado por determinações objetivas e subjetivas. Estas, por sua vez, remetem a uma determinada racionalidade, um determinado modo de ser, pensar e agir sob o capitalismo: à racionalidade hegemônica da ordem burguesa.

Para garantir a sua sobrevivência, o Serviço Social como profissão, tem que responder às demandas. Estas não são unidirecionais; ao contrário, se constituem em necessidades sociais atravessadas por interesses antagônicos oriundos do capital e do trabalho, daí serem as atividades profissionais mediadas pela contradição. Porém, não basta a decisão tomada pelo assistente social em reforçar um dos dois lados da contradição capital-trabalho. O resultado vai depender também de que se encontre uma correlação de forças favorável.

Para ser considerado eficaz, dentro dos padrões e critérios da racionalidade burguesa, o resultado da intervenção do assistente social tem que operar com a alteração de variáveis, daí a instauração de uma modalidade particular de intervenção de caráter inequivocamente manipulatório (Cf. Netto, 1992). Pretende-se chamar a atenção para um tipo de modalidade de intervenção cuja eficácia depende das mudanças que ela seja capaz de operar tanto no âmbito da vida material dos usuários quanto ao nível de socialização destes, integrando-os, adaptando-os às exigências e à racionalidade do capital.

No atendimento às demandas, sejam elas da instituição, da população usuária, dos trabalhadores ou do capital, há que se considerar as condições objetivas vigentes nas organizações públicas ou privadas onde o exercício profissional se realiza. Trata-se, da existência de determinadas condições de trabalho sobre as quais a intervenção vai operar, modificando-as (Cf. Guerra, 1995 e 1997).

Ainda no nível das causalidades a serem enfrentadas na intervenção profissional, temos que a modalidade de atendimento atribuído às questões sociais pelos profissionais depende da modalidade de atendimento dada pelo Estado. Aqui há o suposto de que o formato dos serviços sociais e/ou das políticas sociais, a maneira como estes espaços profissionais se moldam, exerce influência direta sobre a intervenção profissional (Guerra,1995). No capitalismo em seu estágio monopolista, o Estado passa a intervir diretamente na questão social, para o que desenvolve uma modalidade de intervenção tipificada em políticas sociais. A questão social se converte em "questões sociais" e são tratadas como problemáticas particulares, de caráter moral. Nos países dependentes, as políticas sociais são focalistas, setorizadas, fragmentadas, autonomizadas, formalista, abstraídas de conteúdos (político-econômico) concretos. Sua natureza compensatória e seu caráter fragmentado e abstrato expressam o seu limite: elas não visam romper, e, de fato, não rompem com a lógica capitalista. O Serviço Social tem nas políticas sociais a base de sustentação da sua profissionalidade, já que a intervenção do Estado nas questões sociais institui um espaço sócio-ocupacional na divisão social e técnica do trabalho, bem como um mercado de trabalho para o assistente social (Cf. Netto, 1992). Dado seu caráter assalariado e considerando que a intervenção profissional só se realiza mediada por organizações públicas ou privadas, a profissão acaba sendo condicionada pelo tipo, pela natureza, pelo formato, pela modalidade de atendimento das questões sociais pelo Estado burguês.

Porém, Marx e Engels(1989) nos ensinam: ainda que sob condições historicamente determinadas, que independem da sua vontade, são os homens que fazem a história. Por isso o papel do sujeito é de fundamental importância na construção, manutenção, transformação das causalidades em causalidade posta (Cf. Lukács, 1997). Ora, a intencionalidade dos assistentes sociais, o seu pôr teleológico estão sempre direcionados por dois elementos: razão e vontade. Neles localizam-se as perspectivas de liberdade dos homens e, de maneira geral, direcionam as escolhas sobre "o que", "como" e "para que", "quando" e "onde" fazer. Disso decorre que os resultados das ações dependem da existência de condições favoráveis, da adeqüabilidade das escolhas e das intervenções aos objetivos que se pretende atingir e ao projeto societário que se prioriza, e, ainda, da correlação de forças presentes no momento. Portanto, as tendências e perspectivas de atuação da profissão devem ser apanhadas no contexto histórico, na realização das suas funções e no seu nível de maturidade intelectual e ídeo-política, o que implica o resgate da conjuntura sócio-econômica, política e ídeo-cultural dos últimos 30 anos porque, de um lado, há nestes uma aceleração na dinâmica das metamorfoses sociais e, de outro, eles permitem recuperar momentos de inflexão na trajetória da profissão. Vale lembrar que no pós-70 vivencia-se uma crise global sem precedentes na história.

 

 

2. Natureza da crise contemporânea

As abordagens totalizante da crise contemporânea a consideram uma crise global com dimensões amplas, diversificadas, que afeta tanto as formas de produção/valorização do capital quanto as de reprodução/regulação social dos dois sistemas sociais vigentes no século XX: o socialismo real e o Estado de Bem Estar Social (Hobsbawm, 1992 e 1995; Netto, 1993 e 1996). Apresenta-se como uma crise do processo civilizatório, daqueles projetos societários pelos quais este último século se consolidou, das sociedades organizadas por iniciativas de economias planejadas, dos Estados intervencionistas, dos valores sociocêntricos, enfim, das alternativas à barbárie social (cf. Hobsbawm, 1992 e 1995; Netto, 1993; Frederico, 1994).

Como considera Hobsbawm, não se trata apenas da crise de "uma forma de organizar a sociedade, mas de todas as formas" (1995: 21), e sinaliza a necessidade de novos parâmetros, valores, princípios, hábitos, leis, ideologias, utopias, relações sociais. Estes, entendidos como formas de "materialização do regime de acumulação" (Lipietz in Harvey, 1994: 117) são denominados pela escola regulacionista como "modos de regulação"..

Ao mesmo tempo em que a crise da década de 70 afeta os países socialistas, a racionalidade do sistema produtor de mercadorias expande-se, de modo que ela ultrapassa, de maneira "errática e contraditória" (Ianni, 1995: 114) fronteiras geográficas e históricas, donde o que é peculiar ao Ocidente — aqui se inclui tanto o padrão de acumulação produtivista quanto as ações e comportamentos manipulatórios — acaba sendo compatível com o Oriente (cf. idem., ibidem.).

Para efeito desta comunicação iremos nos deter, apenas, na crise do capitalismo, a qual, por si só, contém determinações complexas e de difícil compreensão.

 

 

3. Determinações gerais da crise do capitalismo e suas formas de enfrentamento

 

A processualidade e a dinâmica do capital no período da gênese, expansão e crise do capitalismo à época do Estado de Bem-Estar Social, põe de manifesto o seu caráter: trata-se, em primeiro lugar, de uma crise de eficácia econômico-social da ordem do capital. Em segundo lugar, esta crise pode ser pensada como o esgotamento de um pacto político-social entre as classes: o pacto fordista-keynesiano, vigente numa longa fase expansiva do capitalismo, que, no limite, sustentava a crise e se sustentava dela.

Dentre as abordagens explicativas sobre as crises capitalistas temos a do economista marxista Ernest Mandel. Diz ele que a essência do capitalismo é a realização da lei do valor. Esta, opera em diferentes momentos históricos cuja unidade encontra-se na busca de superlucros, os quais são extraídos do diferencial de produtividade do trabalho. Extrair o máximo de mais-valia e de valorização do processo de trabalho e do processo de formação do valor das mercadorias, constitui-se no traço particular das diversas fases do capitalismo. Não apenas a venda, mas a aquisição de superlucros ou conter a queda tendencial da taxa de lucro, constituem modos de existência do modo de produção capitalista. O movimento do capital na direção do restabelecimento do seu "equilíbrio instável" entre a oferta e a procura, tem em vista sua reprodução ampliada. Mas como não há uma relação imediata entre o processo de produção e a realização do lucro, a reprodução ampliada do capital não é um resultado inevitável. Ao contrário, é essa defasagem, que caracteriza as crises econômicas de superacumulação de valores de troca, que movimenta o modo de produção capitalista. Neste, a contradição imanente está em que a produtividade social engendra a tendência gradual de queda da taxa de lucro (ou a reposição da lei do valor). Sendo as crises capitalistas fundamentalmente crises de superprodução, estas articulam-se com outras causas como a superacumulação, o subconsumo, a anarquia e a desproporcionalidade da produção, a queda da taxa de lucros e pode se iniciar em qualquer dos departamentos da produção: no de bens de produção ou no de bens de consumo, ou até mesmo nos dois. Entende que, no período posterior à década de 40 deste século, o capitalismo alça-se aos superlucros por meio da redução do tempo de rotação do capital fixo, o que só pode ser realizado tendo em vista a revolução tecnológica que põe em movimento a automação, a regulação eletrônica da produção, que intensifica a concorrência. Com o aumento da composição orgânica do capital e a queda na taxa de lucro, instaura-se uma crise estrutural do modo de produção capitalista. As crises capitalistas contemplam mediações muito complexas que se situam no âmbito da produção e da circulação, da concorrência capitalista e da luta de classes (idem.: 213). Pretendemos ressaltar que nos processos de deflagração e enfrentamento das crises, estão implicados acumulação de capital e ação política das classes sociais.

Mais ainda, que nesse contexto o Estado administra a crise intervindo no controle dos mercados e da força de trabalho. Para regular a tendência ao subconsumo, instrumentalizar os mecanismos que garantam a mobilidade e alocação da força de trabalho face as necessidades dos monopólios, o Estado tem que ser legitimado, de modo que ele se torna permeável às demandas das classes subalternas. É da dinâmica dos monopólios, a qual exige a assunção de novas funções por parte do Estado, que este tem o alargamento da sua base de legitimação sócio-política, mediante a institucionalização de direitos sociais. Contudo, vale ressaltar: esta é apenas uma possibilidade cuja concretização depende das lutas de classes.

 

 

3.1. A crise do padrão taylorista-fordista

Em primeiro lugar há que se recorrer à história para compreender em que contexto a racionalidade subjacente ao padrão taylorista-fordista de acumulação da organização do trabalhado amplia-se para todas as esferas da vida social, a ponto de tornar-se a racionalidade hegemônica do período pós-Guerra. Quais as condições que favorecem a hegemonia do padrão de acumulação "rígido"? Dentre outras, a depressão entre guerras, o fortalecimento dos sindicatos, a guerra fria. Porém, tem-se nos fatores econômicos — a reestruturação tecnológica, industrial, comercial e financeira do mundo capitalista, a determinação "em última instância".

Com efeito, a afirmação desse modelo realiza-se sob a hegemonia dos Estados Unidos garantida pelo seu investimento no desenvolvimento do capitalismo alemão e japonês. Tal hegemonia, somada à internacionalização da produção, possibilita a recuperação européia e japonesa e permite a expansão de empresas multinacionais, a aceleração dos processos de industrialização nos países atrasados, maior financeirização do capital. Das circunstâncias que promoveram a consolidação do padrão de desenvolvimento norte-americano, derivam-se inúmeras conseqüências, dentre elas o fato de que, nesse período, as idéias de Ford são disseminadas para toda a Europa.

Do ponto de vista das inovações do fordismo ressalta-se o estímulo ao consumo de massa. Ford entendia que a produção em massa de mercadorias cria um consumo de massa, melhor dizendo, uma demanda crescente por nova produção, que por sua vez, demanda a produção de bens de capital, daí ser o consumo a condição essencial da acumulação capitalista. Constrói, também, um perfil de sujeito histórico em sintonia com as necessidades do capital e com o modelo de acumulação vigente.

Mais ainda. Como observa Harvey "a derrota dos movimentos operários radicais que ressurgiram no período pós-guerra imediato preparou o terreno político para os tipos de controle do trabalho e de compromisso que possibilitaram o fordismo" (1994: 125). Nos EUA, do reconhecido direito de negociação coletiva, garantido pela Lei Wagner de 1933, que permite a ampliação do poder dos sindicatos, estes passam a ser perseguidos e controlados, tendo em vista os riscos de uma "infiltração comunista" (idem.: 127-8).. Porém,

"o extraordinário avanço capitalista ocorrido no pós-guerra com a consolidação do padrão de desenvolvimento norte-americano, ao mesmo tempo em que produziu novos atores econômicos e um intenso processo de internacionalização dos mercados, dos sistemas produtivos e financeiros, reduziu a hegemonia norte-americana e a eficácia das políticas econômicas dos estados nacionais, ampliou a precariedade de suas políticas sociais e colocou em xeque o compromisso social construído no pós-guerra" (Mattoso,1996: 52) (grifos nossos).

É da relação entre os atores que deriva uma determinada forma de sociabilidade, expressa na "administração científica de todas as facetas da atividade corporativa(...)" (Harvey, 1994: 129).

Do seu fortalecimento, o movimento operário põe no centro das lutas de classes a questão democrática. Mas, considerando que, nesse contexto, democratização do Estado e administração racional da economia caminham juntas, desencadeia-se uma avalanche de partidos social-democratas que chegam ao poder na Europa.

Com a instituição do padrão de desenvolvimento norte-americano, parte do custo de reprodução da força de trabalho desloca-se para o Estado, através de políticas sociais. Sobre isso, mostra-nos Mattoso que o Estado, além de ocupar-se da reprodução da força de trabalho, em conjunto com os sindicatos, busca adaptar a força de trabalho à dinâmica e à modalidade de acumulação, de modo que salários e consumo estejam sintonizados com a produção em massa.

A crise dos países capitalistas industrializados, pós-década de 70, cuja expressão mais evidente se localiza no índice de desemprego à nível mundial nos últimos 15 anos, logrou uma reestruturação na produção com a assimilação de técnicas mais flexíveis de produção e gestão da força de trabalho, impõe a diminuição do número de trabalhadores sindicalizados e impulsiona uma crise na Previdência Social. Em contraposição, o trabalho aparece subsumido às formas adotadas pelo capital no enfrentamento da crise que o afeta. Sem iniciativa, enfrentando a ameaça do desemprego que enfraquece suas formas de organização, a classe trabalhadora defende-se como pode do "destino" a que o capital lhe pretende submeter.

É no contexto da Terceira Revolução Industrial e da reestruturação do capital (visando maior competitividade) — e com ele as políticas de desregulamentação e flexibilização do mercado desencadeadas desde o fim da década de 70 — impulsionando a globalização produtiva e financeira, a qual também incide sobre a destruição de postos de trabalho (Chesnais, 1996), que se expressam as condições mais desfavoráveis para o trabalho, base sobre a qual as representações ídeo-políticas dos trabalhadores forjam-se.

No âmbito das determinações sócio-históricas mais gerais, para os trabalhadores assalariados há uma alteração na relação contratual entre capital e trabalho, causando-lhes perdas irrecuperáveis. Dentre as ações mais flexíveis implementadas pelos empregadores destacam-se: alteração na legislação trabalhista, transformação do trabalho assalariado em temporário, parcial, subcontratado, terceirizado. Neste cenário alteram-se as formas de extração de mais-valia, mantendo-se a sua essência: a exploração da força de trabalho. Mais ainda, o estreitamento das fronteiras entre as profissões sociais e o acirramento das disputas, devendo prevalecer aquelas cuja funcionalidade seja adequada à ordem burguesa, a instituição de novas profissões, a desprofissionalização e, até mesmo, a extinção de determinadas profissões. O recrudescimento da classe operária, o estimulo à profissionalização de nível técnico e do voluntariado, melhor dizendo, a polivalência e multifuncionalidade, a necessidade de desenvolver novas competências/alternativas profissionais e novas legitimidades, são alguns dos desafios que esta conjuntura coloca às classes que tem no trabalho seu meio de vida.

Paralelamente, nesta última década, vivencia-se uma situação na qual as alternativas de transformação social aparentemente fracassaram (o socialismo do leste europeu e a social-democracia na França e na Espanha, por exemplo).

O capitalismo aparece com muito dinamismo, sobretudo do ponto de vista técnico. A isto acresce-se o fato de que, percebendo o fim do "socialismo real" como a derrota do projeto socialista como um todo, um expressivo número de trabalhadores passa a crer que "agora é o momento de cuidar da vida cotidiana, dos interesses imediatos e corporativos, daquilo que se pode resolver aqui e agora: não se tem que pensar no amanhã e salve-se quem puder"(Antunes, 1996:82)..

Todas essas condições se acirram nos países do Terceiro Mundo. Neles, há que se registrar que as mudanças e ajustes propostos têm estreita relação com o modo como o mundo capitalista enfrenta o esgotamento do padrão de crescimento do segundo pós-guerra e promove uma modificação na relação entre Estado, mercado e organização social.

Aqui, a crise global e mundial vem acompanhada de um ideário que funcional e adequado às formas pelas quais o capitalismo enfrenta suas crises, substitui as ideologias do "desenvolvimentismo" pela "globalização".

A inserção imediata e a qualquer custo dos países periféricos no mercado internacional, como passaporte para o progresso e ao mesmo tempo como passaporte da globalização, acaba por subsumir a identidade coletiva à irracionalidade político-cultural do neoliberalismo. Tais recomendações advindas do Consenso de Washington trazem como conseqüência a adoção de medidas desindustrializantes (na qual o Chile é exemplar), a desnacionalização das empresas estatais, a conversão dos países em exportadores de produtos primários. Elas estão respaldadas no déficit fiscal que é remetido à esfera da seguridade social (assistência, previdência e saúde). O Estado se transforma no objeto prioritário de reformas.

Considerando que em nossos países não possuímos um Welfare State, ao menos não nos moldes dos países desenvolvidos, "a efetividade dos direitos sociais é residual e portanto não há ‘gorduras’ nos gastos sociais (...) o projeto burguês de hegemonia não pode, incorporar simplesmente a programática da desregulação e a flexibilização e por isso este projeto mascara-se "com uma retórica não de individualismo mas de ‘solidariedade, não de rentabilidade mas de competência, não de redução de coberturas mas de ‘justiça’".(Netto, 1996).

Para enfrentar a crise contemporânea atual, processos de racionalização são direcionados pelos países centrais aos países periféricos, dentre eles a reestruturação na produção, resultado da racionalização do trabalho vivo, a intensificação do capital financeiro, que é o capital no seu maior grau de racionalização e o globalismo, que é a nova condição do imperialismo, produto de uma divisão do trabalho com maior nível de racionalização e da maximização da exploração dos países periféricos pelos países ricos. Esses processos vêm acompanhados de uma programática composta de ajustes econômicos e de estratégias políticas que se consubstanciam no neoliberalismo.

A revalorização do mercado como instrumento de regulação econômica, o controle da inflação como ponto de partida de uma reforma fiscal que reduz gastos públicos, em especial, os gastos sociais; a deflação, como condição para a recuperação das taxas de lucro, são apenas algumas das programáticas adotadas pelos organismos internacionais para os países de Terceiro Mundo, mas, o que importa-nos ressaltar é que, para recuperar as taxas de lucro fez-se necessário, como parte dos ajustes neoliberais, se voltar contra um tipo de relação capital-trabalho típica do pacto fordista-keynesiano, de modo que duas modalidades de ajustes diferenciados para o mesmo objetivo foram desencadeados naqueles países nos quais vigia um Estado de Bem-Estar desenvolvido e um Estado desenvolvimentista. Nos primeiros, deixar que os salários fossem corroídos pela inflação foi o mecanismo encontrado para a redução da massa salarial; nos segundos, o encaminhamento foi o de reduzir as coberturas sociais, por meio da extinção dos chamados benefícios ou salários indiretos.

Neste contexto, verificamos que a ofensiva neoliberal, que se caracteriza como uma estratégia para superação desta crise, se utiliza, em larga escala, de sua ideologia para construir a ambiência cultural necessária a este período particular do capitalismo. Mas, a globalização e a programática neoliberal, encontram sua unidade nas estratégias racionalizadoras que se expressam no novo padrão de acumulação/ valorização do capital, que se constitui na base sobre a qual estas estratégias se estruturam e adquirem uma configuração mais adequada segundo os interesses em presença. É a teoria liberal que fornece as bases de justificação teórico-ideológicas para a sustentação da racionalidade que é conveniente ao estágio atual do capitalismo: a defesa do Estado "mínimo", diminuto, racionalizado e a recorrência às práticas de individualização. Na base desse pensamento está a concepção de direitos naturais, igualdade de possibilidades e da liberdade individual e o princípio da autodeterminação de ser diferente. Tais princípios são reatualizados, subsume-se o antigo ao moderno, por meio de processos racionalizadores.

 

De que maneira os processos e mecanismos racionalizadores de enfrentamento da crise se sintonizam com a herança ídeo-cultural do Serviço Social, bem como a sua funcionalidade eminentemente instrumental?. O que se altera e quais as continuidades com a racionalidade que alimenta o conservadorismo típico da profissão?

 

 

4. As bases postas pela crise e o Serviço Social

Partimos do suposto de que as necessidades e tendências mais gerais da sociedade, algumas aqui apontadas, fundem-se com as determinações particulares do Serviço Social e as alteram em termos das demandas, dos usuários, dos valores, dos critérios, dos padrões societários, das requisições, das condições de trabalho.

Contudo, o que pretendemos evidenciar é a metamorfose do tipo de Estado — historicamente o maior empregador de assistentes sociais — seu redimensionamento e o reordenamento de suas funções, do que decorre uma alteração no papel das políticas sociais, como respostas integradoras do Estado burguês. Se é verdade que o formato das políticas sociais (estatais e/ou privadas), adotado em períodos determinados, coloca prescrições, atribui configurações e ordenamentos à intervenção profissional (Cf. Guerra, 1995), e que sob o neoliberalismo vigora uma concepção de políticas sociais sem direitos sociais (Cf. Vieira, 1997), cabe-nos refletir sobre o que se convencionou chamar de política social neoliberal e quais as conseqüências de se adotar um padrão de políticas sociais abstraídas dos direitos sociais. Para Vieira, tem recebido o nome de política social neoliberal "aquela política que nega os direitos sociais, que garante o mínimo de sobrevivência aos indigentes, que exige contrapartida para o gozo dos benefícios, que vincula diretamente o nível de vida ao mercado, transformando-o em mercadoria" (idem: 70) e sua legitimação tem se realizado por mecanismos que operam com uma entronização do mercado e autonomização das esferas econômica, política, cultural, ética, social; a hipertrofia do capital financeiro, que subsume o processo produtivo e pela cronificação do imperialismo cultural.

As demandas das classes subalternizadas são remetidas ao mercado e/ou tornadas objeto de responsabilidade individual, submetidas à benevolência e solidariedade. O mecanismo geral, historicamente utilizado no "tratamento" da questão social é o mesmo — já que as respostas mantêm-se no universo do conservantismo e do reformismo integrador — qual seja: a fragmentação dos aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais, a abstração dos conteúdos políticos, democratizantes e revolucionários que as questões sociais portam e sua formalização em problemáticas particulares, objeto de tratamento profissional. Como o mercado não reconhece direitos, mas tão somente o poder de compra, só resta um espaço para atendimento das refrações da questão social fora do mercado: nos redutos do assistencialismo, prestado por homens ou instituições de boa vontade. O atendimento da questão social passa a ser realizado por meio de um mecanismo denominado por alguns autores como "refilantropização".

Com isso, o atendimento das refrações da questão social passa a ser realizado pelas instituições públicas não estatais: as ONG’S (estas, formas privilegiadas de objetivação do chamado "Terceiro Setor"), e por meio do trabalho voluntário. Estabelece-se uma nova relação entre as instituições prestadoras de serviço, os agentes e os usuários. Mais uma vez o pensamento conservador articula as perspectivas público-privado e as refrações da questão social, de modo que, o que se mantém no atendimento da questão social são: sua reconversão em problemática de natureza individual e a assunção da questão social por parte da sociedade civil.

A refuncionalização do Estado engendra um reordenamento no mercado formal de trabalho dos assistentes sociais. De um lado, os três segmentos que tradicionalmente contratam assistentes sociais, quais sejam, o setor público estatal, as empresas e as instituições sem fins lucrativos, produzem uma modificação nas formas de contratação, com a ampliação de vínculos de trabalho não estáveis. Com a institucionalização das organizações sociais como responsáveis pela execução das políticas sociais estabelece-se uma multiplicidade de vínculos de trabalho, flexibilizando os contratos, introduzindo os contratos por tempo parcial e contratação através de terceiros, reduzindo carga horária. As conseqüências: maior rotatividade dos profissionais, instabilidade, precarização das condições de trabalho, redução dos salários. Tudo isso porta a tendência a desqualificação do profissional e maior fragmentação da categoria. Também o caráter missionário, a falsa auto-representação da profissão como vocação, a histórica tendência da substituição da intervenção profissional por atividades voluntárias, desprofissionalizadas, são dilemas recolocados pelas condições de trabalho resultantes da conjuntura de crise. Tais alterações têm encontrado legitimação legal na Reforma do Estado, a qual, ao produzir novas relações entre o público e o privado; acentua a racionalidade do mercado na formulação e gestão das políticas sociais. A mesma lógica que tem sido empregada na organização e gestão do Terceiro Setor.

Ainda no âmbito do mercado de trabalho tem-se a execução de práticas paralelas ao mercado formal: assessoria e consultoria às ONG’s, aos Movimentos Sociais, aos profissionais, via promoção de cursos de curta duração, e à voluntários e, nas empresas privadas, junto às chefias. Vale lembrar que estes "novos" espaços profissionais, não poderão substituir os tradicionais campos de intervenção dos assistentes sociais.

Considerando a relativa fragilidade teórica e analítica da profissão., decorrente da insuficiência de pesquisa e de conhecimento sobre a realidade, sobre as demandas e usuários e sobre as novas funções assumidas pela profissão, o que aparece é uma certa ausência de "criatividade" e de instrumentos técnicos para intervir. Acentua-se a tendência neoconservadora, focalista, controlista, localista, de abordagem microscópica das questões sociais, transformadas em problemas ético-morais. Dadas estas condições efetivamente precárias, o atendimento da demanda real ou potencial fica prejudicado, comprometendo o processo de trabalho e, fundamentalmente, os resultados da intervenção profissional. Com isso, constata-se que o nível de profissionalização do Serviço Social nem sempre se objetiva na prática, uma vez que as ações profissionais acabam sendo mais produto de instinto e da experiência pessoal do profissional do que de referências teórico-metodológicas.

Três aspectos merecem ser evidenciados: com as transformações na sociedade, com o mercado colocado no centro das relações sociais, com a entronização da razão instrumental, com a programática neoliberal, do ponto de vista das alterações societárias comuns às diversas profissões, há um aguçamento do conservadorismo típico da ordem burguesa, a hipertrofia da perspectiva individualista, a expansão da racionalidade hegemônica do capitalismo. A ausência de contraposição de expressivos projetos e perspectivas de ruptura com a ordem capitalista acaba colocando no horizonte profissional, em sintonia com a sua tradição conservadora e reformista, a única alternativa que lhe parece possível: a reatualização das suas perspectivas modernizante e conservadora. Isso tem instigado a instituição Serviço Social a manter um movimento instaurado desde a sua gênese: o de subsunção do antigo ao moderno. A tendência de refuncionalizar o velho vem na esteira da própria racionalização e burocratização do Estado e encontra-se em sintonia com as peculiaridades da profissão, as quais remetem às condições que a divisão social e técnica do trabalho reserva ao fazer profissional e à modalidade específica de intervenção: o Serviço Social como meio de manutenção da ordem.

Na contemporaneidade tais demandas conformam-se sob novas condições e são atravessadas por novas mediações. Atualiza-se o caráter voluntarista e volitivo, missionário e vocacional da profissão. Atualiza-se a dimensão técnico-instrumental. Racionalizam-se suas funções e sua intervenção nos programas que o capital implanta para enfrentar a crise: Programas de Demissão Voluntária, Programas de Controle de Qualidade, Programadas de Preparação para a Aposentadoria, Avaliação de Desempenho, etc.

De outro modo, temos que, se as demandas com as quais trabalhamos são saturadas de determinações (econômicas, políticas, culturais, ideológicas), então elas exigem mais do que ações simples, repetitivas, instrumentais, de rápida execução, de resolução imediata. Exigem mais do que decisões tomadas em caráter de urgência, isentas de conteúdos ético-políticos. Elas implicam em intervenções que emanem de escolhas ético-políticas, que passem pelos condutos da razão e da vontade, que se inscrevam no campo dos valores.

Entendemos que, se não se levar em conta, para além das demandas do mercado, as conquistas da modernidade, os projetos societários, as instituições próprias das duas modalidades de sociedade que a Era Moderna nos legou, os valores sociocêntricos, as normas e princípios, os direitos humanos, esta crise global acaba gerando uma tendência à "distorção sistemática da história para fins irracionais" (idem., ibidem.), com o que corre-se o risco de um retrocesso da profissão às suas origens, de operarmos uma redução psicologista do projeto profissional. Em outras palavras, à medida que a ambiência cultural atual é bastante propícia a deixar os indivíduos a cargo de si mesmos, a incentivar soluções individuais, a enfatizar os relacionamentos e as soluções interpessoais, a criatividade, a razão subjetivista e instrumental, a concepção de sociabilidade individualista do "salve-se quem puder", o projeto profissional fica refém das investidas na sua psicologização.

Mas, considerando que não há — nem pode haver — no âmbito da profissão, soluções individuais, qualquer alternativa de enfrentamento dos dilemas atuais passa pela realização de um projeto profissional viável, cujos valores resgatem a perspectiva de universalização dos direitos humanos. O que está em jogo é que sem as conquistas da filosofia clássica, da solidariedade de classes e dos valores democrático-universais, a sociedade contemporânea só pode derivar na barbárie.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Perspectivas para a profissão

Pensar as perspectivas para a profissão frente a conjuntura de crise envolve buscar saídas coletivas. Não se pode negar ou diluir as diversidades econômico-social, geopolítica, cultural e histórica da profissão em contextos diferenciados. Contudo, entendemos que o que permite uma unidade é a racionalidade subjacente ao projeto ético-político profissional. No século XX, como síntese de elementos dados no século IX, os projetos de transformação social se consubstanciam no movimento socialista. Daí que qualquer remissão às perspectivas de transformação social circunscreve-se no horizonte do projeto socialista. No âmbito da profissão os diversos projetos societários se refratam e se embricam nos diversos projetos profissionais que se confrontam na luta pela hegemonia. Na América Latina, os projetos profissionais de extração progressistas são resultantes da luta dos trabalhadores contra o imperialismo norte-americano, contra a ditaduras e a favor da democracia, da liberdade, dos valores sociocêntricos em contraposição aos valores individualistas e visam a redução das desigualdades sociais. Com isso queremos reafirmar a vinculação do projeto ético-político da profissão com a luta mais ampla dos trabalhadores e a necessidade de uma racionalidade (inclusiva, ontológica e crítica) que desencadeie nos profissionais coragem para não retroceder, e a qualificação necessária para o enfrentamento das reformas (neoliberais e social-democratas), para o que o estabelecimento de alianças com os outros profissionais e trabalhadores é fundamental; que permita defender a democracia e os direitos humanos na sua expressão mais radical e o amplo acesso aos bens e serviços sociais, enquanto aspirações das classes trabalhadoras. Mas também uma racionalidade que possibilite conhecer os fundamentos da ordem burguesa e suas metamorfoses; as demandas profissionais e os objetos de intervenção (para o que a atitude investigativa é condição) e estabelecer os meios mais adequados para intervir sobre eles; a correlação de forças do momento, bem como evitar tanto incorrer em falsos dilemas quanto investir em falsas alternativas. Há que se ultrapassar a racionalidade formal-abstrata das correntes tecnocráticas, a visão tarefista-burocrática tanto quanto combater os subjetivismos dos quais as vertentes pós-modernas são legatárias, que visam psicologizar as respostas profissionais. Ambos são produto do pensamento conservador burguês e dele se sustentam.

Para tanto a racionalidade materialista dialética (inclusiva, ontológica e crítica) tem se constituído num vetor fecundo à revisão crítica da profissão, contribuindo para o avanço e maturidade da mesma, revisão esta sem a qual a profissão pode se tornar extemporânea.

 

 

BIBLIOGRAFIA

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